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Rui G. Cepeda

O funk excêntrico do substantivo comum

Texto para “O Cú do Mundo: substantivo comum”, exposição de Ana Paula Oliveira e Mara Castilho na Galeria Monumental (Lisboa), de 27 de Maio a 2 de Julho de 2023.


Distintos dos produtos propostos por intermediários, influenciadores, ou por productores de conteúdos, as artistas Ana Paula Oliveira e Mara Castilho não nos propõem estudos etnográficos, mas estudos sobre representação das excentricidades do substantivo comum. Estudos nos quais os processos de infiltração e de transformação possibilitam uma outra forma de mediação entre o social e o pessoal, entre os desejos de controlo impostos pela realidade e as condições propostas pelas possibilidades abertas na ilusão. Ambas as artistas apresentam obras focadas nas possibilidades de singularidades comuns. Possibilidades compreendidas não como uma disputa com enquadramento violentos – com um intuito final de vencer vs. perder –, mas, sim, uma disputa discursiva entre conceitos – um ganhar vs. ganhar. O resultado óbvio é a abertura do campo de possibilidades de questionamento do substantivo próprio através da transformação do substantivo comum.

A obra de Ana Paula Oliveira lida com questões escultóricas e do espaço, enquanto a presença física do espectador (com uma posição não participativa) cria uma relação de efemeridade e instabilidade. As suas peças concentram-se na tensão resultante do confronto existente entre matérias físicas. Em particular na tensão existente entre elementos físicos e químicos como latão, chumbo, vidro, ferro, etc. No desfecho deste discurso as peças põem em evidência as excentricidades inerentes nos processos transformativos da substância e da tensão entre os elementos naturais. O resultado revigora a existência de outros significados, criar novas significações, relacionamentos, ou linguagens, mas sem perder a carga disjuntiva, sem juntar o sujeito e o predicado. As peças de Ana Paula Oliveira opõem a tensão latente do processo, dos elementos nos sistemas naturais uns com os outros, e reforçam também o agenciamento da artista na natureza. Mas um agenciamento com equilíbrio, numa situação de conflicto enquadrada pela condição ganhar vs. ganhar final.

A noção de conflicto existe aqui como uma forma processual no discurso relacional ao abrir para novos relacionamentos conceptuais. Uma confluência de diversos e múltiplos costumes, hábitos, normas, e valores, um pouco como um funk excêntrico. Neste sentido o conflicto tem de ser percebido como o momento no qual o processo discursivo é usado para questionar e propor novas possibilidades de compreensão dos relacionamentos entre assuntos, entre sujeitos e predicados. Estas formas transformam, assim, as nomeações designadas nas generalizações dos substantivos comuns.

As imagens oferecidas por Mara Castilho, entretanto, focam-se no agenciamento mediativo da arte em tornar visível a infraestrutura que está na base da sociedade económica Ocidental. Seja esta uma estrutura económica assente numa ideologia exclusivamente capitalista, liberal, socialista ou comunista, ou onde tudo está disponível para ser vendido e consumido, incluso imagens e narrativas associadas com a morte, perda ou abandono. As propostas da artista projectam e põem em evidência paradigmas do que é mais do que reconhecido e foi estudado sobre a modernidade e sobre o capitalismo desenfreado. No caso das obras apresentadas na exposição estas indiciam para a produção massificada e consumo desenfreado. As imagens reflectem o vencer vs. perder na crise da indústria automobilística em Detroit (EUA) ou do turismo nos Açores, ou pela a destruição social e cultural na antiga Jugoslávia, e, mais recentemente, na Ucrânia.

Quem olha para as representações, as imagens reflectem-se distorcidas. Estas espelham o desejo deceptivo de um controlo sobre a realidade e como essa realidade é reconhecida socialmente um pouco como no caso do substantivo comum. Para o ensaísta e crítico de arte Jonathan Crary, na arte a atenção estética não está, primariamente, preocupada em olhar e representar a realidade comum, mas, ao invés, está focada na construção de condições que individualizam, imobilizam, e separam os sujeitos da excentricidade da realidade.

Deste modo, a sociedade contemporânea, moderna, não é uma força negativa externa, imposta pela sociedade Ocidental sobre as outras sociedades a nível global. Mas é, por indissociabilidade, uma estrutura positiva de poder a qual, com intuitos productivos socioculturais, procura moldar as condições materiais e epistemológicas dessas outras sociedades. O que a sociedade Ocidental deseja ver, em última instância, não é simplesmente um novo ser, ou um novo eu, mas o novo ser (eu) colocado dentro desse novo mundo. O que pode ser, simultaneamente, tanto uma experiência pública, colectiva, como uma experiência privada, individual. Neste momento entramos no excêntrico campo das dinâmicas das renúncias ou de perda.

Para o académico e crítico cultural Raymond William, a ideia de mediação descreve a complexa relação existente entre sociedade e arte. No entanto, para William, essa mesma noção impede o processo de descoberta de uma qualquer realidade social directamente reflectida na producção cultural, pois as representações quando passam por um processo de mediação o seu contexto e significado original é alterado. Na produção artística e cultural há intermediários, os quais reproduzem a importância da sua produção artística e cultural, enquanto procuram legitimar socialmente os termos da sua autoridade conceptual e propriedade sobre as formas produzidas. Num sistema representativo a ilusão é que a relação directa é sempre impossível.


Ambas as artistas têm interesse por sujeitos onde interpretação e teoria são testadas, discutidas, e, se realizáveis, são absorvidas e desenvolvidas. Elas criam ou abrem o campo de possibilidades para uma nova ligação entre termos diametralmente opostos, mesmo se esse relacionamento cancele os termos em si mesmos. É óbvio que ambas as artistas permitem extrair e produzir de uma forma activa significação das suas representações. Assim, como também é evidente que as mesmas obras artísticas desafiam a tirania das significações ao questionar essas mesmas significações.

Londres, Maio de 2023

Rui Gonçalves Cepeda

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